Ney Moraes Filho*
Para começo de conversa, precisamos entender o que é o Estatuto.
Dito isto, o próximo passo é compreender a estrutura e a organização do próprio Estatuto.
Aqui, é necessário um parentese: o Estatuto trata o adolescente a quem é atribuída a autoria de ato infracional com mais rigor e severidade do que o código penal trata o adulto. Só que, ao adulto é reservado um sistema penal que, apesar de hipoteticamente dever ser voltado à reabilitação social do criminoso, serve fundamentalmente à punição, com o afastamento do convívio comum e está tão degradado que não serve à construção de novas relações sociais baseadas em um conceito de justiça. Ao adolescente, por outro lado, a legislação estabelece que o aspecto punitivo da medida que lhe é aplicada deve ser secundário em relação ao caráter educativo desta medida. Este deve ser priorizado, porque a criança e o adolescente são pessoas em uma condição peculiar de desenvolvimento e que, nesta condição, podem e devem ser educados para se conduzir em uma sociedade mais justa e igualitária que aquela que nós lhes legamos. Um último detalhe: este desenho não se concretiza no sistema violento que temos hoje em boa parte das instituições que executam a medida sócio-educativa de privação de liberdade.
Do artigo terceiro ao quinto, se afirma que a criança e o adolescente são cidadãos com os mesmos direitos dos outros cidadãos e uma atenção especial, devido a sua idade. Esta atenção especial se caracteriza pela obrigação legal de Estado, sociedade, família e o próprio cidadão se responsabilizarem pela proteção aos direitos expressos no Estatuto, garantindo o desenvolvimento integral saudável em condições de respeito e dignidade; caracteriza-se também pelo conceito de prioridade absoluta, expresso em quatro pontos (primazia no cuidado, precedência no atendimento, preferência na elaboração de políticas públicas e destinação privilegiada de recursos) e finalmente, responsabiliza aqueles que violarem ou negligenciarem da proteção destes direitos.
Vamos em frente: o ECA é dividido em dois livros. O primeiro (vai até o artigo 85) descreve e define cada um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, detalhando alguns aspectos de como a sociedade deve se organizar para assegurá-los; e o segundo (do 86 até o 267) identifica cada um dos atores sociais envolvidos na proteção dos direitos descrevendo seu papel, suas condutas e responsabilidades.
No segundo livro, é importante ler as considerações iniciais (art. 86-89), os capítulos que tratam do Conselho Tutelar (art. 131-139), das medidas de proteção (art. 98-102), parte das medidas sócio-educativas (art. 103-114) e das medidas pertinentes a pais e responsáveis (art. 129-130).
Para uma compreensão geral desta parte, é importante saber que as medidas de proteção (art. 101) se destinam a quem teve seus direitos ameaçados ou violados (art. 98) e às crianças que sejam acusadas de prática de ato infracional (o nome que recebe o crime ou contravenção penal cometido por criança ou adolescente). Para adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional, cabem as medidas sócio-educativas (art. 112).
Quando pensamos no Conselho Tutelar, é importante compreender que seu papel é zelar pelo cumprimento dos direitos, não é garantir os direitos, nem executar as ações de proteção aos direitos. Isto significa que os conselhos tutelares devem ser acionados quando a rede de serviços de atendimento não dá conta de assegurar os procedimentos necessários à garantia e proteção dos direitos.
Sobre os Fundos de Direitos da Criança e do Adolescente, uma informação básica é que sua composição. Vem de três fontes: verbas orçamentárias diretas, doações de pessoas físicas e jurídicas (na realidade é destinação de uma pequena fração do imposto de renda devido) e recurso proveniente do pagamento de multas por violações ao ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei reconhecida mundialmente como uma das mais avançadas na proteção a infância e juventude. É uma conquista da luta pela redemocratização do país e um poderoso instrumento para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Campinas, setembro de 2010
Durante as décadas de 1970 e 1980, os movimentos sociais que resistiam à opressão e à violência da ditadura militar produziram um pensamento e ações que levaram ao desenho de um novo modelo de sociedade, fruto do sonho de justiça, liberdade e igualdade.
Este sonho conduziu as lutas históricas que ao longo dos últimos anos do século XX redefiniram as relações entre o Estado e os cidadãos. Reconhecemos na reforma sanitária, na luta anti-manicomial e nos diversos movimentos de direitos humanos os ideais desta nova sociedade sonhada na resistência contra o opressor.
A construção deste novo modelo de sociedade se delineou em legislação a partir da eleição, em 1986, da Assembleia Nacional Constituinte que entregou, a 5 de outubro de 1988 a assim chamada Constituição Cidadã. Nesta, a força dos movimentos populares inscreveu os direitos à saúde, à educação e à proteção integral da criança e do adolescente.
Os artigos da Constituição em que estes direitos estão afirmados, em linhas gerais, demandavam uma legislação específica que detalhasse a forma como concebido por nossa sociedade para seu efetivo exercício. Esta regulamentação se expressa em leis ordinárias, tais como as Leis Federais 8080/90 (Lei do SUS) e 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), cuja função é explicitar a organização dos sistemas garantidores dos direitos a que elas se referem.
Trata-se de uma lei. Em seus seis primeiros artigos define suas linhas gerais.
O primeiro artigo estabelece: esta lei trata da proteção integral de crianças e adolescentes. Começa assim, para que nenhum leitor desavisado vá procurar direito do consumidor, direitos trabalhistas ou questão tributária. Também serve perfeitamente como resposta aos críticos do Estatuto como uma lei que protege a criança e o adolescente: eles leram corretamente; é este o objetivo desta lei! Está escrito com todas as letras.
O segundo artigo define criança como o cidadão com menos de 12 anos e o adolescente aquele entre 12 e 18 anos. O artigo segundo diz também que, nos casos definidos em lei, os efeitos do ECA se prolongam até os 21 anos de idade. A função desta extensão é, por exemplo, assegurar a aplicação de uma medida sócio-educativa para o adolescente que tenha sido responsabilizado judicialmente por conduta descrita como crime ou contravenção na lei penal.
Fecha parentese.
O último destes artigos, o sexto, explica como interpretar o ECA. A leitura será composta de quatro camadas de interpretação:
Para começar, é imprescindível ler o capítulo II (dos direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade), especialmente o artigo 17 (O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais). Este artigo estabelece os parâmetros do direito ao respeito que gozam crianças e adolescentes, de uma forma bastante inequívoca.
Em seguida, tendo esse capítulo em mente, podemos ler os capítulos do direito à saúde, à convivência familiar e comunitária, à educação, cultura, esporte e lazer, à profissionalização e proteção no trabalho e à prevenção especial. É, em geral, uma leitura bastante simples. O capítulo da convivência familiar e comunitária é um pouco mais complicado devido às questões relacionadas à adoções e à família. Muito pouco fala da questão da convivência comunitária (uma grande pena).
Pode-se aí, conforme o interesse específico, ler as partes que tratam das entidades de atendimento (art. 90-97), o detalhamento das medidas sócio-educativas (art. 115-128) e os capítulos do juiz, do ministério público, do advogado, da apuração de atos infracionais e de infrações cometidas pelas entidades, dos crimes e contravenções aos direitos descritos no ECA e as disposições finais.
Também é relevante saber que existem dois tipos de conselhos criados a partir do ECA: os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (art. 88), cujo papel é a elaboração da política municipal de atendimento à crianças e adolescentes, realizando uma ação transversal aos conselhos das políticas públicas setoriais (saúde, educação, esporte, cultura, lazer, assistência social...) e gerindo os Fundos da Infância e Adolescência para a execução destas políticas; e os Conselhos Tutelares (art. 132), cuja função é zelar para que os direitos da criança e do adolescente definidos no ECA sejam efetivamente cumpridos pelos diversos agentes sociais.
Por exemplo, quando uma criança não consegue matricular-se em uma creche ou escola de educação fundamental, a violação de direito pode e deve ser enfrentada pelo Conselho Tutelar, por meio da requisição do serviço à autoridade municipal da área da educação. Prefeitos e secretários de educação já foram processados criminalmente por não oferta ou oferta irregular dessas vagas, devido ao que está escrito no artigo 208 do ECA.
Se, ao ocorrer uma violação ou ameaça aos direitos da criança e do adolescente, a rede de atendimento responder à efetivação da proteção e garantia dos direitos, a comunicação ao Conselho Tutelar da situação em questão deverá ser acompanhada da informação das providências tomadas pelos diversos serviços para que este, ciente da situação e das ações de proteção, avalie se há necessidade de mais alguma medida. Caso a rede seja bem articulada, o Conselho Tutelar pode focar sua atuação, portanto, em ações de planejamento e prevenção, contribuindo para a elaboração orçamentária e para o fortalecimento da proteção.
Uma questão que vem sendo motivo de intenso debate é a chamada doação casada, em que o indivíduo ou empresa que destina parte de seu Imposto de Renda para os Fundos DCA determina para qual entidade de atendimento esta doação deve ser encaminhada. Há diversos pareceres que afirmam a ilegalidade desta forma de destinação do recurso por vários motivos, entre os quais os principais são: